segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

UMA LIÇÃO DE HUMANIDADE









Nise da Silveira foi uma mulher de características marcantes. Tinha a feição franzina, o olhar profundo, mas, principalmente, uma determinação impressionante. Alagoana nascida em 1905 e uma das primeiras do sexo feminino a se formar em medicina no país, seu nome é reverenciado por ter sido ela a mudar e, especialmente, humanizar o tratamento oferecido aos pacientes de hospitais psiquiátricos. Veementemente contrária ao uso de eletrochoques, lobotomias e qualquer forma agressiva de tratamento, Nise decidiu, pelo contrário, “curar” através da arte.

Coincidentemente, neste mês em que completaria 107 anos, e 13 anos após sua morte, a médica psiquiatra, que foi aluna de Carl Jung, tem sua história resgatada em um espetáculo teatral e, em breve, será vista nos cinemas em filme protagonizado por Glória Pires.

No teatro, é o monólogo Nise da Silveira – Senhora das Imagens que aborda toda a sua trajetória. Dirigido por Daniel Lobo e com atuação de Mariana Terra, a peça, que esteve em cartaz no Rio de Janeiro ano passado, acaba de estrear no Teatro Eva Herz, na capital paulista. “Escolhi as passagens que dão conta da construção da identidade, do quebra-cabeça que foi a vida de Nise”, explica o diretor. “Todos da equipe mergulharam demais na história. Não houve ego, só profissionais juntando talentos para um único foco”, completa a protagonista Mariana.

Vida e revolução
Quando o machismo ainda imperava, Nise da Silveira foi a única mulher, em 1926, a se formar na Faculdade de Medicina da Bahia, apresentando a tese Ensaio sobre a criminalidade das mulheres da Bahia. No ano seguinte, após a morte de seu pai – jornalista e diretor do Jornal de Alagoas –, ela migrou para o Rio de Janeiro com o marido e sanitarista Mário Magalhães da Silveira.

O orgulho de ter conseguido o diploma de medicina foi vencido, no entanto, pelo preconceito e as raras vagas disponíveis para mulheres em hospitais. Por isso, necessitou primeiro trabalhar como enfermeira antes de conseguir, em 1933, um estágio na clínica neurológica de Antônio Austregésilo. Nesse mesmo ano, Nise foi aprovada no Concurso Federal para Psiquiatras, começando a trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospital da Praia Vermelha, rebatizado décadas depois como Hospital Pinel.

O contato direto com os métodos agressivos usados nos hospitais psiquiátricos e o apoio do circuito acadêmico a esses tratamentos decepcionaram a jovem médica, que se rebelou contra tais práticas. “Os médicos colocavam os ‘loucos’ como alguém sem alma e sem vida. Nise vai ao básico, busca o olhar e os sentimentos dessas pessoas”, explica Daniel Lobo, que mergulhou na história da psiquiatra por um longo período para conseguir montar o espetáculo.

No entanto, pouco tempo após começar sua carreira profissional, Nise da Silveira foi presa durante o governo de Getúlio Vargas, em 1936. O motivo? A denúncia de ler um livro comunista. “Ela ficou presa por um ano e meio e sofreu tanto na cadeia  que, ao sair, passou os sete anos seguintes à sombra do marido. Ela se anulou como psiquiatra”, conta o diretor. 



Após esse hiato e já reintegrada ao serviço público, passou a atuar no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II no bairro carioca do Engenho de Dentro. Todavia, foi rebaixada ao cargo de terapeuta ocupacional, visto, pela equipe médica da época, como uma função inferior. Sem se abater, Nise da Silveira disse o ‘não’ definitivo ao eletrochoque e a todos os procedimentos violentos praticados contra os doentes. Adotou a arte como método alternativo de tratamento e implantou no hospital o espaço que chamava de ‘Ilha do Amor’, com ateliês de pintura, desenho, modelagem e oficinas de jardinagem, bordado, dança e teatro. Desse modo, revolucionou a psiquiatria convencional, possibilitando que seus ‘camafeus’ conseguissem reatar vínculos com a realidade através de expressões criativas e simbólicas, apesar das contínuas críticas severas de colegas de profissão. “Ela foi transformadora, fez o renascimento de cada ser, conseguiu resgatar o ser humano que existia dentro de cada interno em tratamento”, elucida Mariana Terra.


JUNG
Nise da Silveira é reconhecida igualmente por ter introduzido e divulgado no Brasil a psicologia analítica desenvolvida por Carl Gustav Jung (1875-1961). Profunda admiradora do psiquiatra suíço, ela foi convidada por ele a expor obras de seus pacientes durante o 2º Congresso Internacional de Psiquiatria, realizado no ano de 1957 em Zurique. A mostra recebeu o nome de A Arte e a Esquizofrenia. Nise ainda estudou no Instituto Carl Gustav Jung de 1957 a 1958, e de 1961 a 1962, além de fundar em solo brasileiro o Grupo de Estudos C.G. Jung.


Juntando as peças
“Ao falar de um percurso tão intenso de uma pessoa de carne e osso, percebemos que o teatro pode ser um documentário da vida. O espetáculo sobre a realidade de uma forma visceral mantém a comunicação com o povo de uma maneira estreita e verdadeira”, analisa Daniel Lobo sobre sua intenção com Nise da Silveira – Senhora das Imagens.

Em cena, a interpretação ganha novos recursos, como vídeos, imagens, músicas e coreografia de Ana Botafogo, que assina seu primeiro projeto no teatro. “Foi um processo de construção que permitiu mudanças ao longo de sua criação. Trata-se de um trabalho muito diferente de mim e de tudo o que já tinha feito, porque é contemporâneo. Eu orientava uma atriz descalça, completamente diferente do universo do ballet clássico”, salienta a coreógrafa, que, para criar, estudou a trilha sonora original, composta pelo pianista João Carlos Assis Brasil. “Tive uma atenção muito grande ao acompanhar as músicas e estudei as características de cada personagem, vindas dos sentimentos, expressões e vivências desses artistas.”

Mariana, por sua vez, acredita que a prática da ioga desde pequena a ajudou muito no trabalho corporal. “Mantive uma disciplina natural para a dança. Precisa ter fôlego e respiração para o pique de todo o espetáculo”, diz ela.

Como parte da peça, o escritor Ferreira Gullar e o dramaturgo Zé Celso aparecem em vídeo, prestando depoimento ao trabalho de Nise, enquanto o ator Carlos Vereza assume a voz do inconsciente, interagindo durante todo o espetáculo. “Vai Mariana, pega o cajado, legado de teu pai... E dá vez à voz do coração!”, inicia o inconsciente, chegando à alma.

Projeção nacional
Não é só no teatro que a vida de Nise da Silveira é fonte de inspiração. Um longa-metragem, homônimo do espetáculo e com previsão de estreia em 2013, começou a ser filmado em meados do último mês de janeiro. Com direção de Roberto Berliner e atuação principal de Glória Pires, o filme promete uma democratização maior da figura da médica alagoana.

“Estamos nesse projeto há muitos anos e durante esse longo período trabalhamos em vários roteiros. Certamente, seriam filmes muito diferentes. A vida da Nise foi muito intensa e ela viveu sempre produzindo. Escolhi o período em que ela retorna ao hospital depois de oito anos afastada por questões políticas”, destaca o diretor Roberto Berliner. “É nesse período que ela se recusa a compactuar com a psiquiatria ‘moderna’ e, por isso, acaba num setor abandonado do hospital, a terapia ocupacional. Lá começa a grande virada de sua vida e da psiquiatria brasileira.”

As filmagens acontecem no próprio hospital – hoje chamado de Instituto Municipal Nise da Silveira –, para que a integração com o ambiente e com os internos seja verdadeira. “Os atores estiveram imersos na realidade da psiquiatria dos anos 1940. Inclusive, tiveram conhecimento de todos os métodos utilizados para os tratamentos antes da Nise, e depois, da utilização da arte e suas vertentes nos cuidados com os doentes”, explica a produtora executiva Lorena Bondarovsky.

“Fizemos vivência com os atores dentro do hospital, no meio dos internos, aprendendo com eles, com o pessoal do Museu de Imagens do Inconsciente. Encontramos muitos colaboradores da Nise, mas, infelizmente, deixamos de encontrar outros. Foi um processo muito denso, ela não era uma pessoa qualquer”, complementa o cineasta.





A série intensa de estudo, seguido pelas gravações, não esgotou o ânimo da equipe após conhecer a coragem de Nise. “Ela foi uma das maiores mulheres na história do Brasil, modificou a psiquiatria e a arte no nosso país”, lembra Lorena.

Conjunto de coincidências
Nise da Silveira surgiu muito antes do espetáculo na vida de Mariana Terra, que a conheceu ainda criança, por intermédio de seu pai, o psiquiatra italiano Raffaele Infante. Ele tinha relação pessoal e profissional com Nise, através da luta por uma psiquiatria mais humanitária. Assim, enquanto a médica brasileira teve sucesso com a pintura, Raffaele inclui o teatro nos tratamentos.

“Lembro que fiquei impressionada com a imagem da Nise. Ela era tão frágil e ao mesmo tempo tão gigante de energia! Ela tinha nos olhos uma coisa que mergulhava fundo em você, te desnudava”, revela a atriz.

Morando em Roma e integrante do grupo Commedia dell’Arte, Mariana voltou ao Brasil em 2010 para trabalhar em uma obra de Nelson Rodrigues, com a intenção de levá-la de volta à Itália. Nesse tempo, resolveu morar em uma casa que seu pai havia deixado para ela na Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Para lá, levou todos os seus pertences trazidos da Europa e um piano, no qual ensaiaria a personagem para o novo trabalho.

Naquele mesmo ano, Mariana decidiu passar o réveillon em sua casa, mas, dias antes, sonhou com o pai já falecido e resolveu viajar para a residência da mãe, na Bahia. Sem saber, ela se tornou uma das sobreviventes de um deslizamento de terra provocado pelas chuvas na cidade carioca. A casa, localizada entre o morro e o mar, foi totalmente destruída. No local, nem o piano a atriz encontrou, apenas uma máscara, presenteada por um diretor de teatro italiano. Na linguagem da Commedia dell’Arte, o objeto representa a figura de uma bruxa e o papel transformador da vida. E é com essa máscara que Mariana interpreta a Nise idosa.

“Isso tudo se encontrou na minha vida de uma maneira muito louca, porque também passei por uma fase difícil com o acidente. Foi um renascimento da minha própria vida”, assume a atriz, que conheceu Daniel Lobo antes do acidente, quando o diretor já havia iniciado a produção do espetáculo.

“A peça e a vida de Nise tem uma relação simbólica com a história de vida da Mariana, tinha que ser ela. Foi um conjunto de coincidências”, diz o diretor Daniel Lobo, acrescentando o fato de a atriz ter nascido em 31 de outubro, portanto, Dia das Bruxas, e o dia do falecimento da renomada psiquiatra.

E, entre as suas coincidências, a frase final de um arquétipo da atriz com a máscara da bruxa, integrada ao espetáculo: “Quando se morre, se abandona tudo o que existe. A rua que se conhece e aquela que não se conhece. Tudo o que se possui e o que não se possui, só assim podemos renascer em vida. Nascer transformando e sendo transformados”. ©


LEGADO
As dezenas de obras artísticas produzidas pelos pacientes de Nise da Silveira foram cuidadosamente preservadas e podem ser vistas no Museu de Imagens do Inconsciente, iniciado pela psiquiatra em 1952, na capital carioca.

O museu com as criações de seus artistas se tornou referência para a compreensão do universo interior dos esquizofrênicos. O legado de Nise, porém, se estende com a publicação de diversas obras, centros culturais, instituições terapêuticas e o reconhecimento mundial por meio de títulos e prêmios. “Nise sempre relacionou seu trabalho na base do afeto – e acho que essa é uma palavra que a define”, salienta Daniel Lobo.


Revista da Cultura

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